O ronco pode ser um indicador de apneia, uma doença grave. Novos recursos ajudam tanto o paciente quanto quem convive com ele a vencer esse problema

27 de março de 2017
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Durante muitos anos, o ronco estrondoso de Al Pierce costumava levar sua mulher a sair do quarto e se aconchegar no sofá da sala de televisão. Após inúmeras noites maldormidas, ele passou, então, a usar um pequeno controle remoto para ligar um sensor eletrônico implantado no peito. O dispositivo detecta pequenas mudanças no padrão de sua respiração – sinais precoces de que as vias aéreas de Pierce estão começando a entrar em colapso. Ao detectar essas mudanças, ele aciona um leve estímulo elétrico que percorre um fio até o pescoço. O fio termina em um minúsculo eletrodo ligado a um nervo que controla os músculos de sua língua. O nervo, estimulado pela carga, ativa músculos que empurram a língua de Pierce para a frente na boca, levando as vias aéreas a abrirem.

Durante toda a noite, o encanador de 65 anos de Florence, Carolina do Sul, recebe centenas de pequenos choques – mas dorme tranquilamente. Na manhã seguinte, descansado e revigorado, Pierce usa o controle para desligar o dispositivo.

Essa nova tecnologia, chamada estimulação eletrônica das vias aéreas superiores, aprovada no verão passado pela Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA) dos Estados Unidos, oferece muito mais que alívio de um barulho irritante. O ronco alto de Pierce era o sintoma mais evidente de apneia obstrutiva do sono. O distúrbio é drasticamente subdiagnosticado, com número de atingidos estimado em 25 milhões de americanos. No Brasil, o Instituto do Sono de São Paulo estima que aproximadamente, 33% de pessoas sofrem de apneia. O problema é grave: está associado a hipertensão arterial, cardiopatias, diabetes, depressão e até diminuição da capacidade de aprendizagem, podendo deflagrar ou agravar esses quadros. Em geral, portadores de apneia do sono grave têm o triplo do risco de morte por todas essas causas, em comparação com pessoas sem o distúrbio.

No entanto, não é fácil encontrar auxílio para quem sofre do problema. Uma opção eficaz, uma máscara presa com tira que empurra delicadamente o ar para dentro da garganta para mantê-la aberta, é compreensivelmente rejeitada por grande parte dos que tentam usá-la, por ser bastante desconfortável. Outras opções oferecem resultados contraditórios. Assim, por mais radicais que possam parecer, o implante cirúrgico e a estimulação do nervo talvez sejam a resposta para muitos roncadores. Em um estudo publicado no ano passado no New England Journal of Medicine, a técnica reduziu episódios de apneia grave em cerca de dois terços. A aprovação da FDA viabiliza o tratamento com cobertura de seguro.

Grande parte dos médicos ainda não se dedicam muito a encontrar terapias para a apneia. Mesmo os pacientes tendem a não considerar que o distúrbio seja grave. “A apneia do sono não aparece em um atestado de óbito”, avalia Patrick J. Strollo, Jr., especialista do sono do Centro Médico da Universidade de Pittsburgh. “Apesar de poder contribuir para a morte, não é realmente uma causa direta e o tratamento costuma ser visto como pouco urgente.”

Aproximadamente metade das pessoas que roncam alto têm apneia do sono, segundo a Fundação Nacional do Sono, nos Estados Unidos – mas nem todos sabem que sofrem desse quadro. Pierce só descobriu que tinha apneia porque sua mulher, Gail, solicitou ao médico uma receita de pílulas para dormir. Ele perguntou o motivo, e ela explicou que o ronco do marido não a deixava descansar. O médico lhe disse que, se as coisas eram assim tão sérias, o marido deveria fazer uma polissonografia. Durante o exame, feito à noite, enquanto o paciente dorme, vários sensores são ligados a ele. A observação revelou que Pierce tinha até 30 episódios de apneia por hora – ou seja, a cada dois minutos apresentava dificuldade para respirar. Apesar de anos de cansaço contínuo, ele ficou atordoado ao saber do problema médico. “Pensei que era assim que todos viviam; não sabia de nada diferente”, recorda .

A apneia obstrutiva do sono costuma se desenvolver quando as pessoas envelhecem ou engordam, o que causa o estreitamento do tubo das vias aéreas, assim como a perda do tônus dos músculos da boca e da garganta. Quando os músculos relaxam durante o sono, as vias aéreas sofrem constrição e bloqueiam o fluxo de ar para os pulmões.

Algumas pessoas com apneia grave param de respirar completamente, por até um minuto ou dois, até 600 vezes por noite. Essa privação de oxigênio força o coração a trabalhar mais e cria ondas de adrenalina, que por sua vez provocam picos de pressão arterial. Além disso, os níveis de oxigênio oscilantes podem provocar danos em células e tecidos nos pulmões e em outros órgãos.

Grandes intervenções, como a cirurgia reconstrutiva da garganta, têm sido ineficazes. Médicos frequentemente recomendam alterações no estilo de vida como perda de peso e às vezes até mesmo tocar instrumentos de sopro para fortalecer e tonificar os músculos da língua. Dilatadores nasais e bocais genéricos, fáceis de adquirir em farmácias, visam o ronco, o sintoma, em vez da apneia subjacente. O problema é que o que ajuda um paciente pode ser completamente inútil para outro. Além disso, qualquer objeto projetado para ficar na boca ou na garganta durante o sono, e manter as vias aéreas abertas, pode incomodar o paciente e realmente atrapalhar o sono. Qualquer tratamento precisa ser confortável, fácil de usar e confiável.

É o caso da máscara de oxigênio, chamada CPAP, que pressiona as vias aéreas, cobrindo o nariz (ou o nariz e a boca), sendo mantida por tiras que envolvem a cabeça. Uma pequena bomba de cabeceira proporciona um fluxo constante de ar pressurizado para a máscara através de tubo plástico. A terapia, disponível desde o início da década de 80, alivia sintomas de apneia obstrutiva do sono, e pesquisas indicam índices mais baixos de doenças cardiovasculares e mortalidade entre pacientes que a adotam.

Porém, metade das pessoas que tentaram usar a máscara desistiram. Pierce é um deles. Como tantos outros, ele não conseguia dormir facilmente enquanto usava algo sobre o rosto, e ele não gostava do modo como a tubulação restringia seus movimentos na cama.

Strollo é um forte defensor da CPAP, mas há muito reconheceu a necessidade de alternativa. A estimulação eletrônica de vias aéreas superiores pode ser essa opção, segundo ele. O pesquisador conduziu um amplo estudo sobre o novo tratamento, um ensaio de um ano sobre sua segurança e eficácia, envolvendo 126 pessoas com apneia obstrutiva de moderada a grave. Todos os participantes tinham índice de massa corporal (IMC) de 32 ou menos (um homem com 1,77 m de altura e 101 kg de peso tem IMC de 32), tinham tentado CPAP inicialmente e não apresentavam histórico de doença cardiovascular. Em um estudo de janeiro passado no New England Journal of Medicine, Strollo e seus colegas relataram que a terapia, com um dispositivo feito pela Inspire Medical Systems, reduziu eventos de apneia do sono dos participantes em 68%, de uma média de 29,3 eventos por hora para nove por hora, basicamente transformando a apneia grave em um caso leve. (O CPAP, após ajuste, pode ter resultado ainda melhor, reduzindo a quantidade de eventos de apneia grave a menos de cinco por hora, em média, mas apenas em pacientes que o usarem continuamente.)

O cientista Alan R. Schwartz, especialista do sono na Universidade Johns Hopkins e responsável por grande parte do trabalho inicial de estimulação no nervo – ele mostrou, em animais, que dar choque no nervo controlador da língua abriria as vias aéreas –, diz estar satisfeito, mas cauteloso. “Ainda temos muito a aprender”, observa ele, ressaltando que pessoas com sobrepeso e obesas, grupo que representa porcentagem significativa da população com apneia obstrutiva, não são consideradas boas candidatas para o procedimento devido ao excesso de tecido em vias aéreas.

Além disso, a estimulação envolve um procedimento invasivo. A cirurgia para implante do dispositivo leva cerca de duas horas. Um cirurgião de cabeça e pescoço, operando através de uma incisão na lateral do pescoço, sob o queixo do paciente, coloca um eletrodo sobre o nervo hipoglosso, que controla os músculos da língua. Ele também implanta um conjunto de bateria e um sensor no peito e os conecta ao eletrodo com um fio condutor. Geralmente, o paciente tem alta no dia seguinte; o dispositivo é ligado e ajustado após um mês.

Pesquisadores investigam alternativas, como medicação. Em um estudo de seis semanas envolvendo 120 pacientes, David W. Carley, médico da Universidade de Illinois, em Chicago, está testando um fármaco denominado dronabinol, versão sintética de um composto ativo da maconha. Ele está comparando pessoas que recebem o medicamento com as que não o recebem. O dronabinol pode prevenir ou reduzir episódios de apneia do sono, estimulando certa atividade dos neurotransmissores no cérebro. Outros pesquisadores examinam o papel exercido pela leptina, hormônio que suprime o apetite e pode melhorar a função respiratória. Um pequeno estudo de 26 obesos com IMC superior a 45 sugere que determinados níveis de leptina podem minimizar o colapso das vias aéreas superiores.

Schwartz também quer modificar a técnica de estimulação, testando um dispositivo que elimina o sensor. Em vez disso, ele envia uma carga repetida ao nervo da língua para manter as vias aéreas abertas. Esse refinamento deve simplificar a cirurgia e reduzir peças que poderiam falhar, segundo Schwartz. Pierce, no entanto, está muito feliz com seu sistema. Seja acordado ou dormindo tranquilamente, ele nem percebe a presença do dispositivo.
Fonte: Mente e Cérebro

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